Evelyn De Morgan


Evelyn De Morgan






Coração é terra que ninguém vê


Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...


Cora Coralina

Evelyn De Morgan







Velho


Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.


Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.


A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga,
Que os teus nervosos círculos governa.
Estás velho estás morto! Ó dor, delírio,

Alma despedaçada de martírio
Ó desespero da desgraça eterna.



Cora Coralina

Evelyn De Morgan






Mãe 


Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura. 


Cora Coralina

Evelyn De Morgan







Aninha e suas pedras


Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina
(Outubro, 1981)

Evelyn De Morgan






O Cântico da Terra


Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos. 


Cora Coralina

Evelyn De Morgan






Mascarados

Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.

Cora Coralina

Evelyn De Morgan






Assim eu vejo a vida


A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

Cora Coralina

Evelyn De Morgan








Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes – 
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado 
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...


Cora Coralina

Evelyn De Morgan








“Humildade


Senhor, fazei com que eu aceite 
minha pobreza tal como sempre foi.
 

Que não sinta o que não tenho. 
Não lamente o que podia ter 
e se perdeu por caminhos errados
 
e nunca mais voltou.
 

Dai, Senhor, que minha humildade 
seja como a chuva desejada 
caindo mansa,
 
longa noite escura
 
numa terra sedenta
 
e num telhado velho.
 

Que eu possa agradecer a Vós, 
minha cama estreita, 
minhas coisinhas pobres,
 
minha casa de chão,
 
pedras e tábuas remontadas.
 
E ter sempre um feixe de lenha
 
debaixo do meu fogão de taipa,
 
e acender, eu mesma,
 
o fogo alegre da minha casa
 
na manhã de um novo dia que começa.”

Se temos de esperar,
que seja para colher a semente boa
que lançamos hoje no solo da vida.
Se for para semear,
então que seja para produzir
milhões de sorrisos,
de solidariedade e amizade.

Cora Coralina

Evelyn De Morgan






Todas as vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Cora Coralina

Evelyn De Morgan



Evelyn De Morgan (1855-1919)

De Morgan começou suas aulas de arte aos 15 anos e, em seguida, ganhou como prêmio os estudos em South Kensington e Slade. Sua primeira exposição foi em 1876 na Dudley Gallery, seguida por uma apresentação na Grosvenor Gallery, onde passaria a exibir seus trabalhos regularmente. Em 1887 casou-se com William De Morgan, ceramista e parceiro de William Morris, com quem dividia profundo interesse pelo espiritualismo. Seus temas favoritos incluíam figuras sacras e alegóricas, além de cenas e lendas com mensagem moral ou social. Juntos, vislumbraram uma técnica de pintura com o uso de glicerina que, embora difícil de adquirir, produzia os tons claros e brilhantes que buscava. Em 1916, o horror que tinha pela guerra a levou a montar uma exposição de 13 trabalhos em benefício da Cruz Vermelha.










NÃO SEI... 

Não sei... se a vida é curta...

Não sei...
Não sei...

se a vida é curta
ou longa demais para nós.

Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura...
enquanto durar.
Cora Coralina


Cora Coralina
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas (Goiás GO 1889 - Goiânia GO 1985). Fez apenas os estudos primários, com a professora Silvina Ermelinda Xavier de Brito (Mestra Silvina), por volta de 1899 e 1901. Em 1910 teve seu conto Tragédia na Roça publicado no Anuário Histórico Geográfico e Descritivo do Estado de Goiás, do professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Mudou-se para o interior de São Paulo em 1911. Na década de 30, tornou-se colaboradora do jornal O Estado de São Paulo; foi vendedora da Livraria José Olympio, em São Paulo, e proprietária do estabelecimento Casa dos Retalhos, em Penápolis SP. Voltou para Goiás em 1956, onde exerceu por mais de vinte anos a profissão de doceira. Seu primeiro livro de poesia, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, saiu em 1965. Seguiram-se Meu Livro de Cordel, publicada em 1976, numa edição restrita em Goiás, por P. D. Araújo, e Vintém de Cobre (1983). Em 1984 recebeu o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores.