Moki

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Encantamento


Vi as mulheres 
azuis do equinócio 
voarem como pássaros cegos; e os seus corpos 
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos 
vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo 
que traziam de uma infância de magma 
calcinado. A água ficava negra, à sua volta; 
e os ramos das plantas submersas pelas chuvas 
primaveris abraçavam-nas, puxando-as num 
estertor de imagens. Tapei-as com o cobertor 
do verso; estendi-as na areia grossa 
da margem, vendo as cobras de água fugirem 
por entre os canaviais. Espreitei-lhes 
o sexo por onde escorria o líquido branco 
de um início. Pude dizer-lhes que as amava, 
abraçando-as, como se estivessem vivas; e 
ouvi um restolhar de crianças por entre 
os arbustos, repetindo-me as frases com uma 
entoação de riso. Onde estão essas mulheres? 
Em que leito de rio dorme os seus corpos, 
que os meus dedos procuram num gesto 
vago de inquietação? Navego contra a corrente; 
procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese.


Nuno Júdice

Moki






O Poeta


Trabalha agora na importação 
e exportação. Importa 
metáforas, exporta alegorias. 
Podia ser um trabalhador 
por conta própria, 
um desses que preenche 
cadernos de folha azul com 
números 
de deve e haver. De facto, o que 
deve são palavras; e o que tem 
é esse vazio de frases que lhe 
acontece quando se encosta 
ao vidro, no inverno, e a chuva cai 
do outro lado. Então, pensa 
que poderia importar o sol 
e exportar as nuvens. 
Poderia ser 
um trabalhador do tempo. Mas, 
de certo modo, a sua 
prática confunde-se com a de um 
escultor do movimento. Fere, 
com a pedra do instante, o que 
passa a caminho 
da eternidade; 
suspende o gesto que sonha o céu; 
e fixa, na dureza da noite, 
o bater de asas, o azul, a sábia 
interrupção da morte.

Nuno Júdice

Moki






A Vida


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua 
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam 
quando não se espera o atraso na preocupação 
dos teus olhos, e as nuvens que caíram 
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações 
a abrir-se para dentro e para fora 
dos sentidos que nada têm a ver com círculos, 
quadrados, rectângulos, nas linhas 
rectas e paralelas que se cruzam com as 
linhas da mão; 

a vida que traz consigo as emoções e os acasos, 
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram 
e dos encontros que sempre se soube que 
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com 
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo 
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada, 
sob a luz indecisa que apenas mostra 
as paredes nuas, de manchas húmidas 
no gesso da memória; 

a vida feita dos seus 
corpos obscuros e das suas palavras 
próximas. 


Nuno Júdice,
in "Teoria Geral do Sentimento"

Moki









A Origem do Mundo


De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra, 
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com 
a névoa da madrugada. O mundo, então, 
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está 
por baixo da terra; e as raízes sobem 
numa direcção invisível. De dentro 
de casa, porém, um cheiro a café chama 
por mim: como se alguém me dissesse 
que é preciso acordar, uma segunda vez, 
para que as raízes cresçam por dentro da 
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul. 

Nuno Júdice,
in "Meditação sobre Ruínas"

Moki






Deus


À noite, há um ponto do corredor 
em que um brilho ocasional faz lembrar 
um pirilampo. Inclino-me para o apanhar 
- e a sombra apaga-o. Então, 
levanto-me: já sem a preocupação 
de saber o que é esse brilho, ou 
do que é reflexo. 
Ali, no entanto, ficou 
uma inquietação; e muito tempo depois, 
sem me dar conta do motivo autêntico, 
ainda me volto no corredor, procurando a luz 
que já não existe. 


Nuno Júdice,
in "Meditação sobre Ruínas"

Moki






Segue Teu Destino


Segue o teu destino, 
Rega as tuas plantas, 
Ama as tuas rosas. 
O resto é a sombra 
De árvores alheias. 
A realidade 
Sempre é mais ou menos 
Do que nós queremos. 
Só nós somos sempre 
Iguais a nós-próprios. 
Suave é viver 
só. 
Grande e nobre é sempre 
Viver simplesmente. 
Deixa a dor nas aras 
Como ex-voto aos deuses. 
Vê de longe 
a vida. 
Nunca a interrogues. 
Ela nada pode 
Dizer-te. A resposta 
Está além dos deuses. 
Mas serenamente 
Imita o Olimpo 
No teu coração. 
Os deuses são deuses 
Porque não se pensam.

Nuno Júdice

Moki






Um Rosto


Apenas 
uma coisa inteiramente transparente: 
o céu, e por baixo dele a linha obscura do horizonte 
nos teus olhos, que pude ver ainda 
através de pálpebras semicerradas, pestanas húmidas 
da geada matinal, uma névoa de palavras murmuradas 
num silêncio de hesitações. Há quanto tempo, 
tudo isto? Abro o armário onde o tempo antigo 
se enche de bolor e fungos; limpo os papéis, 
cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, foto- 
grafias cuja cor desaparece, substituindo os corpos 
por manchas vagas como aparições; e sinto, eu 
próprio, que uma parte da minha vida se apaga 
com esses restos.


Nuno Júdice

Moki








Plano


Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor 
que se despeja no copo da vida, até meio, como se 
o pudéssemos beber de um trago. No fundo, 
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na 
boca. Pergunto onde está a transparência do 
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia 
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta 
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa 
da alma suja de restos, palavras espalhadas 
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira 
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez, 
esperando que o tempo encha o copo até cima, 
para que o possa erguer à luz do teu corpo 
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.


Nuno Júdice

Moki






EPIGRAMA


A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.

Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.

Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.

Dai-me, ó loucos, a vossa razão
— esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.


Nuno Júdice
De A Condescendência do Ser (1988)

Moki






O AMOR


Deus — talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco. 

Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida? 

Um deus não precisa do tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.


Nuno Júdice

Moki



Moki é uma jovem artista de Hamburgo, Alemanha, formada na prestigiosa Academia de Belas Artes. Ela também é membro da rede internacional de artistas, From bee to bee. O mundo que ela criou em seu último livro, Asleep in a Foreign Place (Dormindo em um lugar estranho), está cheio de gigantes negros mágicos, chamados djnts, indivíduos rebeldes, e paisagens de sonho, que ela mistura de uma maneira única. Ela disse em uma entrevista, recentemente, quais seriam suas inspirações. “Eu desejo comunicar meus sentimentos em uma foto. Isso me torna sensível a muitas coisas que vejo. Eu coleciono todas as fotos - de jornais e internet, a fotos que me façam congelar por um momento". Parece haver uma sensação de solidão, medo e desespero em suas fotos, que Moki comenta. "Se você pode ver isso em minhas fotos, então é verdade para você.”







Nunca são as coisas mais simples


Nunca são as coisas mais simples que aparecem 
quando as esperamos. O que é mais simples, 
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se 
encontra no curso previsível da vida. Porém, se 
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos 
nos empurrou para fora do caminho habitual, 
então as coisas são outras. Nada do que se espera 
transforma o que somos se não for isso: 
um desvio no olhar; ou a mão que se demora 
no teu ombro, forçando uma aproximação 
dos lábios.


Nuno Júdice



Nuno Júdice (Mexilhoeira Grande, 29 de Abril de 1949) é um ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português.
Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e obteve o grau de Doutor pela Universidade Nova, onde é Professor Catedrático, apresentando, em 1989, uma dissertação sobre Literatura Medieval. Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e Diretor do Instituto Camões em Paris publicou antologias, edições de crítica literária, estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa e mantém uma colaboração regular na imprensa. Divulgador da literatura portuguesa do século XX lançou, em 1993, Voyage dans un siècle de Littérature Portugaise. Organizou a Semana Européia da Poesia, no âmbito da Lisboa '94 - Capital Européia da Cultura.
Poeta e ficcionista, a sua estréia literária deu-se com A Noção de Poema (1972). Em 1985 receberia o Prémio Pen Clube, o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus, em 1990. Em 1994 a Associação Portuguesa de Escritores, distinguiu-o pela publicação de Meditação sobre Ruínas, finalista do Prémio Europeu de Literatura Aristeion. Assinou ainda obras para teatro e traduziu autores como Corneille e Emily Dickinson.
Foi Diretor da revista literária Tabacaria, editada pela Casa Fernando Pessoa e Comissário para a área da Literatura da representação portuguesa à 49ª Feira do Livro de Frankfurt. Tem obras traduzidas em Espanha, Itália, Venezuela, Inglaterra e França.



Claude Monet

Claude Monet







Merina 


Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
 
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada, 
Mais alva que o luar de inverno que me esfria, 
Nas ruas a que o gás dá noites de balada; 
Sob os abafos bons que o Norte escolheria, 
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada, 
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia 
De uma ovelhinha branca, ingênua e delicada. 


Cesário Verde

Claude Monet







Lágrimas


Ela chorava muito e muito, aos cantos, 
Frenética, com gestos desabridos; 
Nos cabelos, em ânsias desprendidos 
Brilhavam como pérolas os prantos. 

Ele, o amante, sereno como os santos, 
Deitado no sofá, pés aquecidos, 
Ao sentir-lhe os soluços consumidos, 
Sorria-se cantando alegres cantos. 

E dizia-lhe então, de olhos enxutos: 
- "Tu pareces nascida da rajada, 
“ Tens despeitos raivosos, resolutos: 

"Chora, chora, mulher arrenegada; 
"Lagrimeja por esses aquedutos... 
-"Quero um banho tomar de água salgada." 


Cesário Verde

Claude Monet







Vaidosa


Dizem que tu és pura como um lírio 
E mais fria e insensível que o granito, 
E que eu que passo aí por favorito 
Vivo louco de dor e de martírio. 

Contam que tens um modo altivo e sério, 
Que és muito desdenhosa e presumida, 
E que o maior prazer da tua vida, 
Seria acompanhar-me ao cemitério. 

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, 
A déspota, a fatal, o figurino, 
E afirmam que és um molde alabastrino, 
E não tens coração, como as estátuas. 

E narram o cruel martirológio 
Dos que são teus, ó corpo sem defeito, 
E julgam que é monótono o teu peito 
Como o bater cadente dum relógio. 

Porém eu sei que tu, que como um ópio 
Me matas, me desvairas e adormeces, 
És tão loura e dourada como as messes 

E possuis muito amor... muito amor-próprio. 


Cesário Verde