Bruno Torfs



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Bruno Torfs

O Jardim Secreto de Bruno Torfs



Perto de Melbourne, na Austrália, numa pequena cidade chamada Marysville, podemos encontrar um jardim original constituído por uma grande parte de floresta tropical. O que o torna peculiar é não só o fato de se situar dentro de uma área urbana mas, sobretudo, a enorme quantidade de esculturas que se encontram disseminadas por todo o lado. Ao todo, são mais de uma centena de figuras com formas de crianças, duendes, sereias, animais fantásticos e outros seres fabulosos que parecem saídos de um conto de fadas e que se fundem com o ambiente como se ali fosse a sua casa.


O autor dessas esculturas e também proprietário do jardim é Bruno Torfs, um artista sul-americano que se radicou na Austrália há alguns anos e aí encontrou terreno apropriado para concretizar este seu projecto. Começou com quinze esculturas ao ar livre e um pavilhão onde exibia mais algumas obras suas, tais como desenhos e pinturas. Porém, depressa se apercebeu das potencialidades da escultura e é nela que tem concentrado o seu trabalho. Atualmente, o jardim das esculturas é uma enorme galeria de arte no meio da Natureza, à qual continuamente são acrescentadas novas obras.


http://www.brunosart.com/

http://www.flickr.com/photos/zaxstevens/sets/72157613972179045/












ENGATILHANDO UM SONO




Já havia tomado banho, pois a noite estava quente, preparava-se pra dormir. Enxugou os pés, em torno de cada dedo e calcanhares. Depois se perfumou com suavidade, penteou os cabelos molhados como de costume, em um ritual todo humano. Olhou para o espelho, em surpresa, como se não conhece o próprio rosto, demoradamente fitou os próprios olhos, e quanta dor existiam neles: era a própria dor. Recusou-se instantaneamente em continuar a olhar, não podia suportar tanto descontentamento. Deitou-se, ajeitou o corpo lentamente, procurando a melhor posição na cama ortopédica, para que não sentisse dor física, pois sabia que a dor em sua alma o afligiria pela noite toda e não precisava de uma agonia extra. Sentia o vento bater em seus pés, em sensação de água evaporando, era fato que não havia enxugado os pés direito. Uma sensação agradável o possuía, ficou contente em sentir.

Virou-se para o lado, com o braço direito em baixo da nuca sentindo os cabelos molhados tocar a pele seca, numa inútil tentativa de conforto. Era uma tortura encontrar sossego para descansar do dia atribulado e de tantas decepções que tivera. Por algum instante sentiu-se leve, tocava o rosto, sentia o atrito, e os ruídos que produziam, ouvia-os como uma melodia distante dentro do próprio corpo. Em eco. Aumentava o atrito intuitivamente, acelerando a música em ritmo estonteante. Experimentou esfregar os fios dos cabelos, destes brotaram um novo som, que misturado ao do ventilador e as batidas apreensivas do coração; estava compondo sonhos musicais para ninar o seu espírito inquieto e o corpo dolorido.

O que tanto lhe tirava o sono? Teria uma resposta em seu alcance, se sua mente não tivesse o turbilhão de pensamentos desorientados, esbarrando-se freneticamente, num liquidificador de idéias. Sentia os músculos enfraquecidos, e os dedos enrijecidos. Puxou uma a um, iniciando pela mão direita, na tentativa de libertá-los, e sabia que conseguira quando subitamente ouviam-se os estalos dos ossos. Que deleite.

Fechou os olhos, e com espanto abriu-os apressadamente. Medo do escuro? Não! Temor das luzes que vira como mandalas. Iluminadas e faiscantes no avesso de suas pálpebras. Várias, girando entre si, dançando e dançando, ao som dos ritmos que descobrira. Fechou os olhos novamente, agora sem medo, e para seu espanto sentiu-se todo comovido; adormecendo lentamente, acalentado dentro de uma barriga maternal, submerso em placenta. Estava todo feto. Aquecido e prematuro. Num berço de carne uterina. Dormiu enfim, sem está num barquinho de jornal naufragado em uma banheira de águas turbulentas. Era um botão de magnólia fechado, sem pressa para desabrochar. Uma lagarta no casulo do mais alto galho. Bem aventurados sejam os que dormem facilmente. Sem dor nas costas.




Sindri Mendes


Bruno Torfs










É SÓ O QUE TENHO PARA DIZER-LHES



Já lhes falei sobre uma mãe que adora desfrutar dos longos nove meses de gestação, mais que depois do parto afoga os filhos em uma bacia de água fervente. E de, uma outra que atira os filhos contra uma parede maciça de pedras marmorizadas, quando está tomada por fúria, ou sacode-os para o ar, acima da cabeça fingindo lhes segurar para dar a falsa impressão de proteção, deixando-os, em seguida cair no chão, repetindo vagarosamente o ritual, até que nenhum osso fique intacto aos impactos exercidos pela queda. Recordo-me de alguns pais que todos os dias, embriagados, ou não, estupram com prazer sádico, as filhas ante os olhos das mães, que nada fazem nada dizem... De um outro, ex-padre, que se casou com uma das senhoras de caridade, da comunidade, mais que nunca abandonou o desejo incontido por corpos infantis, meninos de preferência.

Ou, qualquer dia desses, tenha lhes dito, de um vizinho meu que matou a irmã com dezessete facadas acima da cintura; e outras cinco abaixo dela, ou do marido de minha professora que passou toda adolescência transando com a mãe alcoólatra, e que este, ao torna-se adulto passa a maior parte do tempo cheirando cocaína, ou fumando maconha com pasta à base de cocaína, insistindo numa cura que nunca chega... E que esta professora, também sucumbiu ao vício, e que um dia desses roubou-me dez reais da carteira, os únicos dez reais para comprar o almoço e o jantar. É certo, que não ficaram sabendo por aí, que a mesma apanha eventualmente do marido, quando ambos estão alucinados pelas substâncias alucinógenas; ou que os pequenos filhos sabem como preparar a mistura dos fartos baseados e como tecê-los. Logicamente não sabem de meu pai, que se divorciou de minha mãe, e agora vive a vida mais promiscua que se pode ter, obrigando todas as mulheres de que dele engravidam a fazerem constantes abortos. Não nasceu com a vocação para ser pai, e estas mulheres tão pouco a de serem mães.

Só que agora, eu posso falar-lhes de uma mãe que vendeu tudo o que tinha, saiu da cidade de interior onde vivia com seu filho portador de uma doença rara, e que passa a maior parte de seus dias deslocando sua criança de uma cidade á outra em busca da cura. Ou talvez, de uma outra que lutou contra um câncer no útero durante quatros anos interruptos, apenas para ter a graça de conceber um filho, ou uma filha, o que pouco importa, pois a dádiva de ser mãe suprirá todos os seus anseios maternais. Quem sabe não viram no noticiário da noite passada, a respeito de um senhor de oitenta e oito anos, que se atirou diante de um carro veloz, para evitar a morte de sua esposa distraída, em uma movimentada avenida de capital. Deveria dizer-lhes também sobre as crianças e adultos que padecem de enfermidades neste exato instante em que estás lendo, lutando corajosamente para permanecer respirando; desfrutando com prazer, cada dia que lhes são dados.

Cada brisa sacudindo os móbiles nos tetos de hospitais, ou a luz do sol por entre as frestas das janelas quarto adentra, ou mesmo as frágeis flores que recebem como promessa de esperança, para uma vida longa e duradoura; tudo contemplado e sentido como se fosse o último sentir. Poderia lembrar-lhes com sofreguidão, dos agrestes que molham a língua seca com o primeiro pingo de chuva, para saciar sede ou para finalmente lavar o corpo demoradamente, sobretudo, a delícia de verem suas terras novamente úmidas, revigoradas em verdes, seus bosques floridos e a mesa farta. Ah, e os que sobrevivem á guerras, os que lutam por liberdade de uma fé perseguida, os que tentam reconstruir o corpo mutilado por algum desastre. Aqueles que nesse momento clamam por salvação, ou sobem alguma escadaria, de joelhos curvados, sangrando, como agradecimento a uma benção alcançada... As pessoas que acabam de abrir os olhos depois de longínquos tempos em coma profundo, ainda com os olhos embaçados,
a desfrutar novamente das cores e do próprio rosto.

Pois bem, não agradeceríamos a chuva se não conhecermos os dias de seca e a terra rachada sem água. O alimento, se nunca virmos alguém padecendo de fome, ou se não tivéssemos comida para estancar o alarde dolorido de não comer... Mesmo as cores, se apenas conhecêssemos o preto ou o branco, ou o escuro absoluto. É o contraste da vida, ou que supomos ser vital: é o caminhar peregrino por desertos até encontrar ao outro lado, uma pequena fonte de águas frescas. É a seiva que corre por entre o tronco, e a ferida aberta que começa a fechar-se, e o sorriso pálido dos que sofre de anemia, é uma circunferência esvaecida no céu anunciando que iluminará a noite escura, a fumaça do cigarro subindo até desaparecer no ar. Ou seria, uma fogueira crepitante numa colina fria, ou um milharal com milhos secos; uma melancia apodrecida no chão.

Outrora, seria uma vela acesa escorrendo parafina quente pelo castiçal, ou o incenso queimando como fumo aos deuses, ou o rodopiar da saia de uma cigana descalça, ou ainda, uma mariposa colocando a ponta da asa para fora do casulo. Um beijo no primeiro bocejar da manhã. Um tropeçar, e o lascado na unha do dedão esquerdo; um correr danado atrás da pipa que se perdeu no vento, o musgo verdinho que começa a brotar na calçada. O cachorro envenenado, uivando para não morrer. A imagem da santa que caiu do altar e quebrou a cabeça, o arroz que queimou na panela. O velório do avô, ou o enterro da amiga, que não se pode ir por está em outra cidade. Bem se vê que, não se pode dar o legítimo valor ao paraíso, quando não se conhece o inferno. E, naquele dia em que estivermos cruzando a passagem para outros mundos, estaremos carregando o único tesouro que é possível de se levar nos bolsos: os momentos preciosos que vivemos. E nesse dia não poderei dizer-lhes mais nada, absolutamente nada.



Sindri Nathanael


Bruno Torfs














INOCÊNCIA ESQUECIDA



Prelúdio:



“Eu conheci aquele homem perdido...

Ele vagou por entre meus sonhos

Fez de minha alma seus travesseiros mofados

Sussurrou aos meus ouvidos seus agouros desafinados

Acorrentou meu espírito com um terço em seus tornozelos

Arrastou-me pelo caminho das cinzas

Adornou meu pescoço com um colar de medo e aflição

Fez-me chupar a língua com sadismo

Buscando a recordação de um beijo que nunca existiu

Arrancou minha pele, e fez um casaco para os dias de frio

Eu conheci aquele homem sem nome...

Como Vênus em forma de menino

Faltando partes, para á mão não estender

Desejos profundos, adormecidos com resignação

Fazendo-me rezar para um Deus morto

Encolhendo-me dentro de minhas torturas particulares

Mergulhando minha liberdade em piscinas de pecados

Queimando as roseiras com amor e ódio

Eu conheci aquele homem desafiador...

O que rouba o espírito, criando quimeras

Para uma luta longa e dolorosa...”



Senta-te no último acento de madeira sobrevivente

E contemple a última ópera que te fiz
Cada nota desesperada, desse grito inesperado

Um canto de dor, e confissões entoará

Como pétalas mortas jogadas ao vento

Testemunhando os mistérios de teus infernos

É o canto das entranhas da loucura
Prematuro aborto de minha agonia

Para decifrar-te, revelando cada pedaço meu

Em prelúdio, com versos pálidos e escuros

Disfarçados para que não entendas

Os segredos da vida escondidos em mim
É a canção que te chamas para fora da igreja onde moras

Onde dormes com teus bonecos de vodu

Entoando palavras em línguas agora perdidas

Escutes a melodia que sopra vitalidade nos corações fracos

Cantes, escutes, vejas, sintas

Pegues estas asas quebradas e aprenda a voar

Laves teus olhos fundos e aprenda percorrer

Meus desconhecidos caminhos sem tropeçar

Dê aos teus pés de barro, pele e ossos

Deixe-me ser tua urgente liberdade

Admitas que meu útero seja tua prisão

Num santuário de arames e flores

Venhas pelos corredores onde a fantasia é livre

Onde as histórias do ancestral continuam vivas

Venhas para onde o passado foi perdido

E o futuro ainda será ganho sem angustias

Tocando a face das estrelas brilhantes em tempos de primavera

Para que todas as vozes sejam ouvidas

Experimentadas em contínuos arrepios voluptuosos

Em noites aromatizadas com perfumes de mil e duas violetas
Este é o canto silencioso numa luz infindável

Canta a chegada da alvorada em nosso leito

Neguei minha capacidade de amar

Agora estou disposta a desistir dessa luta

Tu, meu visitante íntimo...

Com teu cuspe, eu curo minhas feridas.




Sindri Nathanael